Em tour pela fábrica de São José dos Pinhais (PR), reportagem observou que manufatura digital envolve bilhões de dados e controle total das linhas de produção
Indústria 4.0 é um conceito de manufatura amplo que envolve muito mais do que a aplicação de equipamento automatizado nas linhas de produção. Para entender de fato o que ele significa, e quais tecnologias estão envolvidas, é preciso ir conhecer de perto. E foi o que a reportagem da Automotive Business fez na terça-feira, 25.
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Visitamos as fábricas que formam o complexo industrial Ayrton Senna, mantido pela Renault em São José dos Pinhais (PR), onde são produzidos automóveis e veículos utilitários, como é o caso da van/furgão Master, além de motores e transmissões.
A fabricante vem incorporando, aos poucos, elementos que aproximam suas linhas da digitalização, um dos pilares do moderno conceito industrial. A respeito desse tema, já nos primeiros metros de caminhada pela fábrica chamada CVP (Curitiba Veículos de Passeio), nos damos conta de que Indústria 4.0 é antes de tudo, e sobretudo, eliminação de papel.
O adeus às folhas de papel
Para quem nunca entrou em uma fábrica na vida, um breve retrospecto: era comum em um passado não muito distante o emprego de folhas de papel em diversas etapas da produção veicular.
A linha apresentou um problema de abastecimento de peças? Reporta-se em papel a ocorrência. O funcionário precisou se ausentar? Justifique em papel. Acabou o papel? Informe os superiores com uma requisição escrita em papel.
Tirar o papel da jogada, mais do que provocar uma economia relevante com toda a sorte de pastas, quadros de avisos, clipes e grampos, representa um importante avanço em termos de agilidade de processo. Enquanto papéis somem por aí e nunca são encontrados, dados que circulam em ambientes digitais são mais práticos no que diz respeito a acesso e disseminação.
Na CVP da Renault, as linhas de montagem são ladeadas por estações de trabalho com telas grandes, onde são exibidas, por exemplo, plataformas de gestão de produção, indicadores ligados à manufatura dos veículos, à manutenção dos equipamentos, e também informações gerais do dia a dia dos funcionários – lembretes de eventos, compromissos internos e até um feliz aniversário.
Uma vez concentradas na rede, as informações podem ser acessadas de diferentes lugares, de forma que funcionários da montadora com cargo de liderança circulam pela fábrica com tablets. Já não há mais a necessidade do gestor ficar por perto o tempo todo.
Lá na unidade de produção de veículos de passeio hoje existem 243 estações como esta. Há planos para que outras tantas sejam incorporadas nas demais áreas da fábrica, com os sistemas sendo adaptados de acordo com as particularidades e complexidades de cada uma.
Mais adiante, ainda dentro da CVP, conhecemos uma sala de vidro dentro da qual funciona uma espécie de zona de monitoramento. Isso porque no espaço há, de novo, uma tela onde são exibidas imagens em tempo real de determinadas linhas de produção da unidade. Mas não são imagens de câmeras, e sim reproduções virtuais do ambiente físico.
“Por meio deste gêmeo digital, podemos promover melhorias na produção de forma mais rápida e se antecipar às falhas”, disse Marcelo Aroldi, gestor da manutenção da fábrica, enquanto que, na tela, era reproduzida a área de montagem de rodas. Ele informou, ainda, que hoje é possível verificar remotamente dados que podem indicar que há algo de errado no funcionamento das linhas, sugerindo reparos.
Ainda há espaço para o convívio entre o velho e o novo
A visita passou na sequência pela área de estampagem de peças e soldagem dos componentes que forma a carroceria dos modelos produzidos na CVP, no caso, Kwid, Sandero, Duster, Captur e Oroch. No entanto, nesta etapa do percurso, chamou a atenção que apesar de toda a modernidade que hoje a manufatura automotiva pode acessar, ainda há espaço para as velhas ideias e ferramentas.
Acontece que há, na CVP uma seção onde são produzidos componentes que equipam modelos Renault que já saíram de linha, como as primeiras versões do Sandero e do Logan, por exemplo. Os métodos são quase nada automatizados, com soldas e armação das peças feitas de forma manual pelos operadores.
E não há problema algum nisso, garante o diretor da fábrica, Vagner Mansan. Acontece que os volumes de produção ali são baixos, o que viabiliza o emprego de velhas e lentas maneiras de se montar componentes. Os pedidos de produção nesta área ocorrem sazonalmente, e dizem respeito à obrigatoriedade que as montadoras têm para atender ao mercado de reposição mesmo após os veículos saírem de linha.
“Outras fabricantes acabam delegando esta produção para empresas terceirizadas. Nós decidimos que o melhor seria produzir internamente estes componentes. Fazemos portas, capôs e tampas do porta-malas, geralmente as partes afetadas em colisões”, contou Mansan.
Mais adiante, chegamos a uma outra sala de vidro onde a Renault organizou uma espécie de apresentação das novas tecnologias empregadas em sua manufatura. Houve demonstrações de peças produzidas por meio de impressão 3D e também aplicações de ferramentas de realidade virtual ao processo produtivo.
Metaverso vai acelerar o desenvolvimento de veículos
Nesta etapa começaram a ficar mais claras as pretensões da Renault no campo da Indústria 4.0 e, também, o conceito propriamente dito – como mencionei no início desta reportagem, é algo amplo, complexo, às vezes difícil de definir sem que seja possível observar como funciona na prática.
Acontece que a montadora pretende reproduzir todo este ambiente fabril no universo virtual, que hoje em dia ficou popularizado por meio do termo metaverso. E por que isso é importante? Porque o mundo virtual proporciona ganhos de eficiência e cortes de custos como nenhuma outra tecnologia recente já proporcionou à indústria automotiva como antes.
Uma vez dentro do mundo virtual, a produção de veículos passa a ter um nível de controle tal que todo e qualquer movimento de equipamentos vira um registro eletrônico. O que faz com que a empresa tome decisões mais rápidas acerca dos mais variados tipos de ocorrências.
O desenvolvimento de novos equipamentos fica mais rápido porque testá-los deixou de ser algo possível apenas no mundo real: enquanto o trabalho em uma área da fábrica segue normalmente, engenheiros se embrenham no ambiente virtual fazendo experiências que podem, no futuro, gerar maior produtividade no local.
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E todas essas possibilidades definem o que é realmente a Indústria 4.0. Não é apenas poder fabricar produtos com alto nível de customização em um espaço conectado diretamente ao canal de vendas acessado pelo cliente, como nos diz a teoria. Trata também da criação desse ambiente produtivo, que requer controle, armazenamento e, sobretudo, processamento e análise de informações. A máquina em conversa com o homem.
Lançar produtos de forma mais rápida e barata, assim como manter as linhas e ritmo regular de produção, no final das contas acaba sendo um diferencial competitivo no mercado. Para Carlos Sakuramoto, diretor de manufatura da AEA, a Associação de Engenharia Automotiva, as montadoras correm para ter a melhor tecnologia em mãos justamente para ter novos modelos no mercado antes dos concorrentes.
“A competição entre as montadoras está forçando as empresas a lançarem produtos mais rapidamente. E dentro desse contexto, os sistemas digitais aceleram isso porque a prototipagem se tornou um processo mais rápido, assim como os testes. Acabou virando um diferencial competitivo”, contou o representante da associação. “As plataformas globais e a digitalização viabilizaram tudo isso.”
Especificamente na Renault essa jornada digital começou em 2016, quando a fabricante ampliou a cobertura do wi-fi no complexo industrial e passou a usar alguns recursos digitais na produção. A coisa foi avançando – no ritmo dos investimentos, que são altos – e, de 2019 a 2021, a empresa passou a explorar os dados gerados pelos equipamentos conectados.
Atualmente, a empresa já está envolvida com segurança cibernética, redes de conexão com fornecedores e gestão dos dados gerados por esta ampla cadeia: estamos falando de 1 bilhão de dados gerados por dia. A partir de 2023, o planejamento indica aprofundamento dos projetos no metaverso produtivo que está sendo criado.
Todas as montadoras querem a manufatura digital
Vale lembrar que a Renault não é a única montadora que trilha o caminho da Indústria 4.0. A Stellantis, que produz no Brasil veículos das marcas Fiat, Peugeot, Citroën, Jeep e RAM, também está com suas linhas em estágios bem avançados em termos de digitalização de manufatura, para citar um exemplo no segmento de veículos leves.
No segmento de pesados, a Mercedes-Benz é outra fabricante que se mostra adiantada na jornada da produção digital.
Como tudo na vida, há obstáculos no país para que a manufatura digital avance. Segundo o estudo “Indústria 4.0 no Brasil: cenário e perspectivas”, organizado pela KPMG, falta de recursos e até resistência às mudanças figuram na lista de empecilhos.
Na opinião de executivos do setor ouvidos no levantamento, a falta de orçamento (para 38% dos respondentes), a cultura ou resistência à mudança (para 33%) e a falta de conhecimento (outros 33%) são as três principais barreiras atuais.
De qualquer forma, o processo ganha corpo no Brasil e não poderia ser diferente, uma vez que os veículos produzidos no país deram um amplo salto em termos de conteúdo tecnológico, seja para atender às exigências do Estado ou aquelas que emanam do mercado consumidor. Há quem diga que os veículos passaram a ficar mais caros por causa disso, mas aí já é outra longa, e polêmica, história.