Como nasceu o pioneirismo mineiro da Fiat, que é a cara do Brasil

O governador Aureliano Chaves e o presidente Geisel na inauguração da fábrica de Betim, em 1976

Redação AB

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O governador Aureliano Chaves e o presidente Geisel na inauguração da fábrica de Betim, em 1976

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Às 11h20 do dia 9 de julho de 1976, a sirene acionada pelo então presidente da República, Ernesto Geisel, ecoava pela fábrica da Fiat recém-inaugurada sob aplausos de 1,6 mil convidados especiais, onde apenas três anos antes havia um gigantesco descampado.

Era uma plateia tão selecionada que não havia lugar nem para o prefeito de Betim, a pequena cidade a 26 km de Belo Horizonte que agora sediava uma montadora. Cada vaga fazia diferença, pois precisavam acomodar diversas autoridades, como três ministros, o governador de Minas Gerais e o presidente mundial da Fiat, Giovanni Agnelli, além de 500 jornalistas do Brasil e do exterior.

Toda aquela pompa e circunstância se justificava não só pela solenidade de situação, mas pelo ineditismo do negócio: pela primeira vez, uma montadora chegava ao Brasil para estabelecer sua sede fora do eixo Rio-São Paulo. E ainda por cima uma marca desconhecida pelos brasileiros, que não faziam ideia de que o nome vinha das iniciais da Fabbrica Italiana Automobili Torino. Área de funilaria no ano de inauguração da fábrica de Betim

À primeira vista, a empreitada parecia uma insanidade empresarial: o porto mais próximo ficava a quase 500 km de distância, não existia transporte ferroviário por perto, o mercado mineiro era modesto e, o mais importante, não havia fornecedores na região. Na verdade, 90% dos fabricantes de autopeças estavam no ABC paulista, que concentrava 11 das 12 fábricas de veículos existentes na época.

Isso explica o forte boicote que parte dessa indústria organizou contra a nova montadora. Até jornalistas paulistas apoiaram a choradeira. Mas nada disso impediu que a Fiat conseguisse convencer que 12 fornecedores (dos 323 iniciais) se instalassem na região para o início da produção em Betim.

A explicação para a escolha de um local tão inesperado estava em outra iniciativa pioneira da Fiat. O governador mineiro Aureliano Chaves gostava de dizer que era a primeira sociedade comercial no Brasil entre uma montadora e um Estado, que tinha um capital de US$ 340 milhões (US$ 1,6 bilhão em valores corrigidos), dos quais 45,29% pertenciam a Minas Gerais.

GOVERNO MINEIRO COMO SÓCIO DA FÁBRICA

Apesar de minoritário, o governo mineiro não tinha dúvidas na sua aposta, pois esperava angariar, além dos lucros diretos que viriam da venda de automóveis, um aumento na arrecadação de impostos e o efeito multiplicador de seu investimento na criação de empregos e na geração de renda na população. Outra vantagem é que poderia escolher o presidente e outros diretores da empresa. No final, foi esse apoio societário que fez a Fiat decidir por Betim, já que outros Estados só entravam com os mesmos benefícios fiscais.

Como era sócio interessado, Minas Gerais vendeu à montadora por preço simbólico um terreno de 2,25 milhões de metros quadrados e ainda se encarregou de fazer a terraplanagem e a instalação das redes de energia, água e telefonia, além das estradas de ligação. Mesmo assim, o Estado mineiro não pensava em manter-se sócio por muito tempo: a ideia era esperar que o negócio começasse a dar lucro para valorizar as ações e mais tarde vendê-las. Área de finalização da montagem e prensas de estamparia da carroceria

A participação do dinheiro público num empreendimento industrial particular ajuda explicar o número moderado de convidados e a simplicidade da festa de inauguração, que serviu às autoridades um almoço de lombo assado acompanhado de vinho nacional, enquanto os 2 mil funcionários tiveram direito apenas salgadinhos e três copos de chope cada, já que todos começariam o expediente a partir das 14h10, quando o presidente Geisel deixaria o evento.

O pioneirismo mineiro ainda guardava mais uma surpresa para o mercado brasileiro. O modelo escolhido para inaugurar a produção local era o Fiat 147, considerado moderno para o estágio da indústria automobilística da época. Ele foi o primeiro carro nacional com motor transversal e com coluna de direção articulada e o segundo a ter pneus radiais.

Patrocínio

O hatch vendia um conceito de um carro pequeno por fora e espaçoso por dentro, que era difícil de ser compreendido pelo brasileiro médio, que mesmo uma década depois considerava que o porte era um dos grandes valores de um automóvel.

Para tornar a situação ainda mais desafiadora, ele chegava com a tarefa de disputar mercado com o Fusca, o veículo mais vendido do Brasil e reconhecido pela simplicidade, robustez mecânica e baixo custo de manutenção.

ANÚNCIO COM TIME DE BASQUETE

Pelo menos o 147 tinha como ponto positivo o baixo consumo de combustível, uma virtude que se tornava cada vez mais desejada nos anos 70, sob o fantasma dos constantes choques de preço do petróleo, que fizeram o governo brasileiro criar em 1975 o ProÁlcool, um programa que incentivava o uso do álcool como substituto dos derivados de petróleo.

Para desmistificar os aparentes problemas do 147 e enaltecer suas qualidades, a Fiat lançou uma campanha agressiva de publicidade. Sob o slogan “Enfim, um carrão pequeno”, um comercial de TV mostrava um time de basquete se acomodando no pequeno hatch para comprovar seu interior espaçoso, enquanto outro filme fez o carrinho atravessar os 14 km da Ponte Rio Niterói com menos de 1 litro de gasolina para comprovar seu apetite comedido – ele teria usado apenas 750 ml de combustível.

Por fim, um terceiro anúncio de lançamento demonstraria a robustez do carrinho com outro teste da vida real: fez o Fiat subir e descer os 365 degraus das escadarias da Igreja de Nossa Senhora da Penha, no Rio de Janeiro (veja ao fim do texto os vídeos dos comerciais de 1976 do lançamento do Fiat 147).

PROJETO ITALIANO COM TEMPERO BRASILEIRO

Para ser capaz de passar por essas provas de fogo, o 147 exigiu um considerável trabalho de engenharia local para adaptar um projeto italiano às necessidades brasileiras. O modelo escolhido foi o 127, hatch lançado na Europa em 1971 que aqui sofreu diversas alterações, a começar pelo design.

A suspensão foi elevada em 5 cm e precisou ser reforçada para suportar as péssimas condições das rodovias do Brasil e das incontáveis estradinhas de terra, o que também obrigou os engenheiros a melhorar o sistema de vedação da cabine para evitar a infiltração de poeira, um problema desconhecido pelos italianos.

O motor teve a cilindrada aumentada de 903 para 1.049 cm3 para garantir uma potência extra a fim de dar conta das ladeiras urbanas e serras rodoviárias tão comuns no País, assim como a taxa de compressão foi reduzida para suportar a gasolina de baixa octanagem e qualidade duvidosa. O Fiat 127 italiano era a base do 147 brasileiro

Todo esse trabalho de design e engenharia foi realizado enquanto a fábrica estava sendo construída. Sem as instalações prontas, as equipes precisavam mandar constantemente os protótipos e os técnicos para a Itália a cada rodada de avaliação ou aprovação.

Ao final, tudo deu certo. A fábrica de Betim foi concluída antes do prazo, com planos de produzir em um ano 100 mil veículos e 200 mil dentro de cinco anos, além de exportar 100 mil motores nos 12 meses seguintes.

E já na inauguração a Fiat lançou mão da tradicional mistura de ousadia e inovação que seria sua marca nas décadas seguintes: apresentou aos convidados o protótipo ainda em estágio bem inicial do primeiro carro a álcool do mundo, muito antes de chegar ao mercado – o 147 movido a etanol só seria lançado em 5 de julho de 1979. Mas isso já é outra história.


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