Por que a última milha é questão-chave para resolver a mobilidade

Utilizar carros para andar menos de dois quilômetros é medida antiquada e poluente. Em todo o mundo, bicicletas e outras soluções ganham espaço

Redacao AB

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Utilizar carros para andar menos de dois quilômetros é medida antiquada e poluente. Em todo o mundo, bicicletas e outras soluções ganham espaço

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No Brasil, a mobilidade sempre passou por fases específicas, certas obssessões com prazo de validade. Entre as décadas de 1940 e 1970, a implementação de ruas e rodovias era a prioridade. A partir dos anos 1970, houve atenção para o transporte ferroviário urbano. E agora, no século 21, as ciclovias e sua integração com outros modais estão sob os holofotes.

A atenção do poder público e da iniciativa privada ao transporte individual integrado trouxe à pauta da mobilidade outra questão: a primeira e a última milha. Trata-se de um conceito já conhecido na área de logística, em que a “última milha” é a jornada que a encomenda faz do último centro de distribuição para a casa do cliente.

“Quando falamos de primeira e última milha na mobilidade de pessoas em áreas urbanas, estamos normalmente nos referindo ao deslocamento do ponto de partida do usuário até o transporte público, ou do transporte público até o destino final deste usuário”, define Danielle Hoppe, gerente de mobilidade ativa do IDTP Brasil (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento).

Segundo Hoppe, esses deslocamentos podem ocorrer em diferentes contextos urbanos, como áreas centrais com ampla oferta de comércios e serviços, áreas residenciais pouco densas, áreas residenciais periféricas com alta densidade populacional e afins. Ela esclarece:
“As opções de primeira e última milha mais adequadas ou viáveis vão depender do tipo de desenvolvimento urbano e do padrão de deslocamento da população atendida. As soluções passam pela caminhada, pela bicicleta, triciclos, patinetes e ciclomotores de uso individual ou compartilhado, assim como por aplicativos de transporte por demanda, que podem operar com micro-ônibus, vans e automóveis, por exemplo”, diz.

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POR QUE PRECISAMOS FALAR SOBRE A ÚLTIMA MILHA?

Essa discussão é importante na atualidade porque, com o adensamento populacional em áreas urbanas, soluções para esses trechos curtos passaram a ser essenciais. Em todo o mundo, já existem exemplos de programas de incentivo para o deslocamento na última milha.

Em Chicago, nos EUA, há o Plano de Mobilidade de Última Milha para o distrito de Belford Park. Ele possui quatro linhas de ação: estabelecer uma rede de mobilidade a pé contínua e segura em toda a cidade, desenvolver uma rede conectada de ciclovias e serviços de micromobilidade, expandir o acesso ao transporte público e serviços de transporte compartilhado e, finalmente, criar uma cadeia de ruas completas e inteligentes.

Também nos EUA, a cidade de Chandler City criou um programa de última milha que dá desconto de 50% nas viagens do aplicativo Lyft para quem estiver indo ou voltando de um ponto de ônibus. Já algumas cidades espanholas, como Victoria Gasteiz e Vigo, possuem escadas e esteiras rolantes em áreas de topografia acidentada que foram pensadas especialmente para a realização da última milha.

Uma experiência muito interessante é a do projeto Last Mile, realizado por seis países europeus (Áustria, Luxemburgo, Eslováquia, Polônia, Espanha e Bulgária) para resolver os problemas de última milha de seus turistas. Diversas soluções foram estudadas, todas elas dentro da proposta de FTS (sistema de transporte flexível, na sigla em inglês), que preenchem as lacunas entre o transporte tradicional para a população e os modais para turistas. Entre essas soluções está uma frota de carros sob demanda com tarifa fixa para rotas pré-determinadas e parcerias com empresas de ride-hailing e bike-sharing.

A opção pela bicicleta para a realização dos trechos de primeira e última milha é uma das soluções mais apontadas pelos especialistas na área. As vantagens são muitas, desde a não emissão de gases poluentes até o relativo baixo custo de implementação. Um relatório da EEA (Agência Europeia para o Meio Ambiente, na sigla em inglês) até mesmo apontou que uma combinação entre transporte público, caminhada e bicicleta para a última milha seria um modelo ideal para diminuir as emissões de gases de efeito estufa nas grandes cidades.

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AS SOLUÇÕES DE ÚLTIMA MILHA NO BRASIL

Por aqui, os programas de última milha ainda são tímidos. Um dos melhores exemplos é a parceria entre a Uber e o Metrô do Rio de Janeiro – desde 2018, os usuários do metrô que utilizam o cartão Giro têm direito a descontos em viagens no aplicativo se estiverem indo para (ou saindo de) uma das estações do modal.

“Uma pesquisa do Observatório Nacional de Segurança Viária realizada pelo Datafolha em 2019 identificou que 84% dos brasileiros já usaram os aplicativos como complemento ao transporte público”, informou a Uber em entrevista a Automotive Business, sem informar o nome do porta-voz. “O índice é ainda mais alto em cidades em que a Uber chegou há mais tempo, como São Paulo, com 87%, e Rio, com 88%”, diz a empresa.

Em São Paulo, a Uber lançou em 2019 a opção Transporte Público no aplicativo, recurso que exibe informações sobre linhas de ônibus, metrô e trens para que o usuário compare as opções e escolha a que for mais vantajosa. No entanto, não há descontos para quem baldeia entre os modais público e privado e também não há bilhetagem do transporte público no app.

DE CASA PRA BIKE, DA BIKE PRO BUSÃO

Há mais iniciativas no que diz respeito a bicicletas. O caso mais notável é o de Fortaleza, que lançou em 2016 o programa Bicicleta Integrada. Foram instalados bicicletários em diversos pontos da cidade, especialmente em terminais de ônibus, e eles funcionam 24 horas por dia. O usuário se cadastra e pode retirar gratuitamente uma bike de qualquer um deles, com um prazo de 14 horas para a devolução, o que permite o pernoite com o veículo.

Ou seja: a pessoa desce do ônibus, pega a bike, vai pra casa, dorme e, na manhã seguinte, pedala de volta até a estação e devolve o veículo. Tudo de graça e com mais de uma opção para desbloquear os modais: é possível usar o aplicativo do Bicicleta Integrada ou o Bilhete Único dos ônibus.

O modelo de Fortaleza, que é considerado bem-sucedido pelos especialistas, veio acompanhado de outras medidas para incentivar seu uso. A cidade aumentou em 249% em cinco anos sua malha cicloviária, passando de 68 quilômetros em 2013 para 240 quilômetros em 2018 (hoje, são mais de 350 km). Essa evolução foi feita de forma sistemática e organizada, por meio do Plano Direto Cicloviário Integrado (PDCI), e o objetivo é chegar aos 500 quilômetros de malha até 2030. Segundo reportagem do Jornal do Commercio, a Prefeitura desembolsa R$ 60 mil para criar cada quilômetro.

Com o sucesso do Bicicleta Integrada, a Prefeitura de Fortaleza criou também o Bicicletar, um segundo programa. Mas, em vez de oferecer a bicicleta para a última milha de grandes trajetos, o Bicicletar é uma solução para trechos pequenos. Com o bilhete único do transporte público, o usuário pode retirar a bicicleta em uma estação e usá-la gratuitamente por uma hora.

AS SOLUÇÕES PROPOSTAS POR OUTRAS CAPITAIS BRASILEIRAS

Em outras capitais brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Recife e Porto Alegre, e também em alguns outros municípios, existe o programa Bike, operado pela empresa Tembici, que pertence ao Itaú. Ele fornece docas com bicicletas compartilhadas que podem ser usadas 24 horas por dia. Você desbloqueia a bike pelo aplicativo e, depois, tem um tempo pré-determinado para devolvê-la em alguma das estações do serviço. São cerca de 16 mil bikes hoje em todo o país, elétricas e mecânicas.

A grande diferença do Bike é que, por ser operado por empresa privada, ele tem custos e limitações que podem restringir o acesso da população mais carente. É preciso comprar um passe diário ou fazer uma assinatura mensal ou anual. E, mesmo assim, o tempo máximo de uso de cada bike é de 60 minutos – mais do que isso, é preciso pagar uma taxa extra. A única exceção é a doca da estação Cidade Tiradentes, em São Paulo. Uma bike alugada lá pode ser usada gratuitamente por 12 horas.

“As estações com maiores fluxos de retirada e devolução das bikes são próximas às estações de metrô e terminais de ônibus, permitindo a intermodalidade”, afirma Renata Rabello, gerente de planejamento urbano da Tembici.

“Registramos em 2020 que 20% das viagens no Bike Sampa são integradas com o transporte público. E, no Bike Rio, 125 estações têm possibilidade de conexão com ele”, conta ela. Ou seja: os usuários aproveitam as bicicletas como complemento aos seus trajetos, e não como substitutas

Trata-se, portanto, de um modal muito apropriado para a última milha, especialmente se você considerar que, só na capital paulista, mais de 40% das saídas diárias (ida e volta) com automóveis percorrem menos que 2,5 km, segundo a última pesquisa Origem-Destino do Metrô de São Paulo, de 2017. “A bicicleta tem recebido muita atenção nessa discussão porque é um veículo altamente eficiente no consumo de energia”, opina Danielle Hoppe.

“É o modo de transporte mais apropriado para distâncias curtas, de 5 a 8 quilômetros, tem baixíssimo custo operacional, de aquisição e manutenção e requer pouco espaço para circular e estacionar”, enumera a especialista.

De acordo com Rabello, o potencial é de que a América Latina tenha mais de 300 mil bicicletas em estações fixas até 2026. O nosso país já tem, desde 2012, a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), que estabelece, entre suas diretrizes, a prioridade dos modos de transportes ativos sobre os motorizados e dos serviços públicos coletivos sobre o transporte individual. Some a isso a demanda crescente por transporte, o encarecimento dos custos com automóveis e as exigências de cortes de emissões de gases de efeito estufa e fica fácil deduzir que, em breve, a discussão sobre a última milha e as bicicletas irá se intensificar.

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