Criador e primeiro CEO da FCA morre aos 66 anos e deixa legado histórico
Uma admirável trajetória chegou ao fim no hospital da Universidade de Zurique, Suíça, onde Sergio Marchionne faleceu aos 66 anos na manhã da quarta-feira, 25, após complicações de uma cirurgia. O mais carismático e provocativo executivo-chefe da indústria automotiva na atualidade, Marchionne entra para os livros de história por ter salvado da falência iminente dois dos maiores grupos do setor, primeiro Fiat e depois Chrysler, que se fundiram com a criação da FCA em 2014.
A FCA deve muito de sua transformação em empresa rentável e global ao seu idealizador, que arquitetou a formação de uma maiores fabricantes de veículos do mundo – que por ironia do destino, pela primeira vez, apresentou balanço financeiro semestral (leia aqui) com dívidas zeradas, justamente no mesmo dia da morte do principal arquiteto e estrategista desse resultado, antecipado por ele próprio no início de junho em apresentação a analistas e jornalistas dos planos da empresa para os próximos cinco anos, quando até usou uma improvável gravata (indumentária que sempre recusou) para anunciar que a FCA tinha pagado as dívidas e vivia seu melhor momento (leia aqui).
“Infelizmente, o que temíamos aconteceu. Sergio Marchionne, homem e amigo, se foi”, relatou em comunicado John Elkann, CEO da Exor, holding da família Agnelli controladora dos grupos FCA, CNH Industrial e Ferrari, dos quais Machionne foi o CEO por 14 anos, até semana passada. No sábado, após ter sido alertada que o estado de saúde do executivo havia piorado para colapso irreversível, a diretoria da empresa se reuniu às pressas para adiantar a sucessão que estava prevista para acontecer só em abril de 2019. O chefe das marcas Jeep e Ram, o inglês Mike Manley, foi nomeado novo CEO da FCA (leia aqui).
Algo inesperado até a semana passada, a causa exata da morte de não foi revelada. O site italiano Lettera43 sustenta que o executivo sofreu uma embolia pulmonar enquanto estava sendo operado para retirada de um sarcoma (tipo de câncer) do ombro. A doença – e sua morte – foi possivelmente a única grande derrota de Marchionne ao longo dos últimos 14 anos que passou no comando do conglomerado de empresas da família Agnelli. O italiano que passou a adolescência e o início de sua vida profissional no Canadá, onde se formou em filosofia, administração, advocacia e se tornou contador, conseguiu virar um jogo que muitos analistas acreditavam ser impossível de ganhar – e fez isso duas vezes, nos grupos Fiat e Chrysler.
“Minha família e eu seremos para sempre gratos pelo que ele fez”, reconheceu Elkann no comunicado. “Acredito que a melhor maneira de honrar sua memória é construir o legado que ele nos deixou, continuando a desenvolver os valores humanos de responsabilidade e abertura dos quais ele foi o mais fervoroso campeão”, resumiu o presidente do conselho de administração da FCA.
LEGADO
Concordando ou não com seus métodos e estratégias, muitos dos principais executivos do setor manifestaram admiração pelo legado deixado por Marchionne. “A indústria automotiva perdeu um verdadeiro gigante”, publicou no Twitter o CEO do Grupo Daimler/Mercedes-Benz, Dieter Zetsche, que dirigiu a Chrysler na época que a companhia pertencia ao grupo alemão e perdia muito dinheiro. “Sergio criou um legado admirável para a indústria automotiva”, declarou Mary Barra, CEO da GM, que poucos anos atrás foi tomada pelo braço por Marchionne para passear com ele nos corredores do Salão de Detroit, levando jornalistas e fotógrafos à loucura em meio às especulações que as duas companhias negociavam uma fusão.
Tamanha fama e reconhecimento foram construídos no setor em pouco tempo, começando em 2004, quando Marchionne foi chamado pelos Agnelli para assumir o Grupo Fiat, que registrou prejuízo de US$ 2,5 bilhões naquele ano e estava à beira da falência. Poucos se lembram que antes disso o executivo já tinha salvado outra empresa, trabalhado como CEO na bem-sucedida reestruturação da seguradora suíça SGS, que chamou a atenção dos donos da corporação italiana.
Marchionne fechou fábricas ineficientes, renegociou dívidas e conseguiu fazer a General Motors recomprar por cerca de US$ 2 bilhões uma participação societária que a Fiat tinha na companhia americana. Depois promoveu investimento de € 10 bilhões em 20 novos produtos em apenas quatro anos. O caixa voltou ao azul antes do fim daquela década, dando oportunidade a outro negócio arriscado: a compra da Chrysler, também em estado falimentar, em processo que começou gradualmente no fim de 2009.
De forma inacreditável para muitos, Marchionne reestruturou o grupo Chrysler, se livrou do empréstimo caro do governo americano, reformulou a linha de produtos e, em poucos anos, transformou problema em nova salvação. Graças à recuperação da economia dos Estados Unidos e à mudança de preferência dos consumidores por utilitários esportivos em todo o mundo, as marcas Jeep de SUVs e a de picapes Ram – esta última separada por ele da divisão Dodge quando assumiu o comando da Chrysler em 2009 – atualmente sustentam a rentabilidade da FCA e são as que receberão a maior porção dos investimentos de € 45 bilhões programados no novo plano quinquenal, até 2022.
Marchionne conseguiu garantir a rentabilidade da companhia ao conter até agora os pesados investimentos que toda a indústria automotiva vem fazendo em novas tecnologias disruptivas, em um movimento que o executivo chamou de “destruição de capital”, já que todas as marcas gastam bilhões para desenvolver soluções de direção autônoma e propulsões alternativas que, se compartilhadas, poderiam custar bem menos.
Para desviar dos altos custos sem ficar para trás em tecnologia, a estratégia da FCA até aqui foi firmar parcerias mais baratas com outros fabricantes e fornecedores, como é o caso de Waymo e BMW para o desenvolvimento de condução autônoma e eletrificação do powertrain.
IRÔNICO E EXÓTICO
Muitas vezes irônico e sem papas na língua, Marchionne criou para si a imagem de oráculo exótico do setor, atraindo as atenções de multidões de jornalistas ávidos por discursos e declarações de efeito de um executivo de aparência desalinhada e sem vaidades, pouco convencional para boa parte de seus vaidosos pares da indústria.
Avesso a paletós e gravadas, muitas vezes descabelado recém-saído do sofá que dormia ou do jatinho que o transportava pelo mundo, sempre metido em um pulôver escuro – para evitar o que chamava de desperdício de tempo ao se vestir –, Marchionne tornou-se maior do que as duas companhias que salvou do precipício. Como última ironia, morreu justamente no dia da divulgação oficial do último resultado financeiro que ajudou a construir.
“Sergio era muito especial, único. Não há dúvida que ele fará muita falta”, admitiu o novo CEO Mike Manley, durante a divulgação do balanço semestral na quarta-feira. O bom resultado financeiro apresentado não conteve a queda acima de 10% das ações da FCA negociadas nas bolsas de Nova York e Milão, como prova de dúvida do mercado sobre como a companhia irá sobreviver sem o seu maior estrategista. Manley certamente terá dificuldade de trabalhar sob uma sombra tão grande, ante inevitáveis comparações que surgirão com alguém incomparável.