Brasil abre as portas para linhas de montagem importadas

Sobrevida do veículo a combustão no país é oportunidade para atualização das fábricas locais a um custo menor

Bruno de Oliveira

Bruno de Oliveira

Sobrevida do veículo a combustão no país é oportunidade para atualização das fábricas locais a um custo menor

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A corrida pela eletrificação da frota circulante em países desenvolvidos não transformou apenas veículos e a mobilidade urbana, mas também os meios de produção. Afinal, produzir automóveis elétricos tem suas particularidades, e a então configuração das fábricas, com equipamentos, processos e logística moldados para o carro a combustão, virou algo aparentemente obsoleto.

Uma vez disse o químico Antoine Lavoisier que na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. A célebre frase cabe no atual contexto da indústria global, onde o descarte de alguns é ouro para outros.

Neste caso, linhas de montagem modernas, que foram concebidas para produzir em larga escala, com equipamentos de última geração, deixaram de cair na vala da inatividade para ganhar sobrevida nas filiais de montadoras instaladas em países onde os veículos a combustão ainda terão anos pela frente.


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As diferenças entre o processo de eletrificação veicular entre países ricos e aqueles em desenvolvimento viabilizou uma espécie de temporada de caça às linhas de montagem motores, transmissões e outros componentes que fazem parte da arquitetura do veículo a combustão. 

Isso porque este acesso ao equipamento de fábricas no exterior proporciona um enorme e vantajoso corte de custos às fabricantes instaladas aqui. Seria possível investir menos, por exemplo, na construção de um ativo para produzir componentes para veículos híbridos, uma vez que os equipamentos já foram amortizados pela matrizes no passado.

Mover possibilita linhas de montagem importadas

A importação dessas linhas é uma atividade incentivada pelo Programa Mobilidade Verde (Mover), que será a próxima política industrial que dará as diretrizes para o setor automotivo nacional.

No capítulo quatro da medida provisória (MP) que será votada no Congresso, consta a possibilidade de habilitação de projetos de relocalização de unidades industriais, linhas de montagem ou células de produção, conforme procedimentos de importação de bens usados, para a produção de produtos automotivos.

As empresas que realizarem esta operação, segundo as regras do Mover, poderão apurar crédito financeiro correspondente ao imposto de importação dos equimentos industriais recebidos. Hoje, quem importa linhas e equipamentos paga o imposto de importação referente à categoria.

“O processo de produção de veículos híbridos e seus componentes, por exemplo, demanda um altíssimo investimento que demora para dar retorno porque, para isso, é preciso escala, e o nosso mercado ainda é pequeno. A importação das linhas, em outras palavras, acelera o processo produtivo de uma forma mais barata”, disse Henry Joseph Jr, diretor técnico da Anfavea, associação que representa as montadoras.

Equipamentos ligados à eletrificação e à combustão

Ele disse, ainda, que a importação que será feita pelas empresas homologadas no Mover não ficará restrita apenas aos equipamentos ligados à eletrificação. Haverá também o desembarque de linhas que produziam componentes para tecnologias voltadas para a combustão interna que ainda são inéditas nos veículos Made in Brazil atualmente.

“Ainda há muito o que se avançar em termos de injeção de combustível, recirculação de gases gerados pela combustão interna, filtro, centrais eletrônicas… A eletrificação é o futuro, mas o motor ICE ainda pode ser mais limpo do que já aqui no Brasil”, completou o representante da Anfavea.

Para Marcus Vinicius Aguiar, presidente da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA), a medida poderá inserir o país no contexto mundial de produção de transmissões automáticas, algo que ainda não aconteceu porque é algo que demanda uma operação custosa quando é colocada na mesa a equação ativo versus demanda.

“Vai ajudar a nacionalizar essa produção, com certeza. O incentivo chega justamente para isso, para elevar o patamar tecnológico da nossa produção nacional a um patamar mais alto, para trazer mais inovação e projetos de engenharia. No caso dos câmbios automáticos, é algo que pode, sim, acelerar a produção local”, afirmou Aguiar.

Importação pode fomentar industrialização

Talvez este seja o principal benefício da importação da linha de montagem, apontam os interlocutores. Isso porque ela poderá também retomar o processo de industrialização no país, que caiu nos últimos anos principalmente no setor automotivo.

Ainda que a produção local de veículos não tenha conseguido decolar rumo aos patamares de antigamente, a inserção de linhas importadas de componentes poderá abrir espaço para uma maior atividade produtiva em outras frentes que não a montagem final dos veículos, gerando eventualmente mais empregos.

Em nota técnica publicada em julho de 2021, o Dieese, que é o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, apontava para essa tendência, afirmando que “a reconversão das plantas produtivas, visando à modernização da matriz energética, implica a transformação de toda a sua cadeia produtiva e, por conseguinte, pode deflagrar um ciclo industrial virtuoso, que restrinja o processo de desindustrialização, no qual outros segmentos podem ser criados”.

Nesse caso específico dos câmbios automáticos, a demanda local hoje é importante, uma vez que mais de 60% dos veículos comercializados atualmente no país são dotados de uma transmissão desse tipo, segundo dados da Bright Consulting.

Em março, a consultoria mostrou um estudo no qual conclui que a eletrificação trará oportunidades, dentre elas a localização da produção de componentes novos para baratear os veículos.

A consultoria, porém, alertou: “o grande X da questão é a competição com volume de escala de players do exterior, principalmente em autopeças”.

Brasil terá de brigar por linhas de montagem

Não é apenas o Brasil que está de olho nessas linhas de produção. Outros países onde o veículo a combustão também ganhou sobrevida disputam esses equipamentos. Como Turquia, Índia e, principalmente, o México, que mantém um parque produtivo exclusivamente para atender um mercado norte-americano que, curiosamente, guinou para o motor híbrido.

“Nesse sentido entra o estado para nos dar condições para disputar a importação dessas linhas, porque as matrizes vão enviá-los para as operações com maiores possibilidades de volume e lucratividade”, contou Joseph Jr, da Anfavea.

O que poderá ser favorável à indústria nacional nessa concorrência com outros países é uma outra tendência apontada pela Bright Consulting no horizonte, que é o processo de diminuição de dependência de fornecedores asiáticos, chamado de “nearshoring”. Algo que pode trazer para o Brasil a produção de novos componentes.

Com o atual volume de investimentos anunciados para os próximos anos pelas montadoras instaladas no país, é possível que essa tensão em torno da disputa com outros países tenha de certa forma ficado mais branda. Já foram anunciados R$ 125 bilhões até 2032, recursos que, em sua maioria, vão financiar essa transição energética dos veículos.

O volume do investimento total poderá ser maior caso se confirme um aporte de R$ 6 bilhões por parte das autopeças. Este setor, inclusive, também poderá se beneficiar das importações da linhas. Para o Sindipeças, a entidade que o representa, ele poderá propocionar oportunidade no exterior para os fornecedores.


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O Sindipeças se manifestou, inclusive, “totalmente favorável” ao incentivo à importação de linhas de montagem.

“Com a interrupção da produção desse tipo de tecnologia na Europa e nos Estados Unidos nos próximos anos, o Brasil, com cadeia completa de produção, torna-se forte candidato a assumir posição de destaque no mundo, como exportador de motores, veículos e autopeças para países da América Latina, África, Oriente Médio e da Ásia, onde a eletrificação será mais lenta. A oportunidade está sendo disputada por diversos países e precisamos aproveitá-la”, informou a entidade por meio de nota.

Além de movimentar o setor de autopeças, a importação de linhas de montagem proposta pelo Programa Mover também refletirá nos negócios do setor local de máquinas equipamentos. E de forma positiva, ainda que a importação denote uma evental perda de espaço dos equipamentos nacionais dentro das fabricantes da indústria automotiva.

De acordo com João Alfredo, diretor executivo de tecnologia da Abimaq, a associação nacional dos fabricante de máquinas, todo processo de importação de linha também puxa a aquisição de equipamentos produzidos no Brasil, no sentido de adequar o conjunto que veio do exterior às especificações locais.

“Se essas linhas vão para algum lugar, que seja para o Brasil, porque o movimento acaba gerando negócios para os fabricantes locais de máquinas e equipamentos. Só o futuro vai dizer se o país está atrativo o suficiente para atrair esses equipamentos”, disse Alfredo.