Mobility Now reúne pensadores da mobilidade urbana para apresentar soluções a um país que perde 697 ciclistas por ano
Em fevereiro deste ano, o Brasil se chocou ao saber da morte de Claudemir Cauê dos Santos Queiroz, ciclista de 17 anos que morreu após ser atropelado por um carro em São Paulo. Depois da colisão, Claudemir foi arrastado por 100 metros pelo veículo. O motorista tentou fugir após o acidente e foi preso.
Esta é mais uma morte nas alarmantes estatísticas de um país que mata 697 ciclistas por ano, segundo dados da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), que registrou 8.363 mortes e 12.697 internações no período de janeiro de 2010 a junho de 2020. De lá para cá, nada melhorou: com a pandemia, subiu o número de ciclistas nas ruas e também os acidentes com eles. Só na cidade de São Paulo, as mortes cresceram 52% nos sete primeiros meses de 2021.
É uma realidade aterradora, ainda mais quando se tem a certeza de que todos esses óbitos poderiam ser evitados. Mobility Now conversou com especialistas para saber quais são as melhores soluções para diminuir as mortes de ciclistas em nosso país. As respostas estão reunidas abaixo e revelam algo que o poder público já deveria saber: enquanto o carro for o protagonista da mobilidade urbana, as estatísticas não vão mudar.
“São três pontos principais que mudariam a realidade. Maior controle da velocidade, fiscalização e punição a maus motoristas e infraestrutura dedicada combinada com redesenho viário. Se forem atacados estes três elementos, o trânsito se torna muito mais seguro.
Para reduzir drasticamente os acidentes, uma cidade como São Paulo não pode ter limites que ultrapassem uma velocidade incompatível com a vida. Precisamos de novos limites de velocidade que sejam cumpridos.
Um ponto fundamental é a infraestrutura, que vai além da ciclovia. É preciso uma mudança de desenho viário. As vias urbanas têm uma coisa chamada velocidade de projeto: quando cada via foi planejada, foi desenhada para uma determinada velocidade. No Brasil, historicamente, as velocidades sempre foram muito altas para o conforto do motorista. Quando você entra em uma via expressa, você é induzido a dirigir de uma forma mais veloz.
Para a segurança das pessoas, é necessário um movimento justamente contrário: de redesenho viário para induzir a baixas velocidades. Isso é técnica, é infraestrutura e não demanda grandes investimentos do poder público. É fazer ampliação da calçada para aumentar a angulação da conversão, redistribuir os estacionamentos na via, aumentar elementos visuais para que o motorista naturalmente diminua a velocidade, diminuir as faixas de rolamento.”
Daniel Guth, diretor executivo da Aliança Bike
“A ausência de políticas públicas que pensem e priorizem a mobilidade urbana do ponto de vista das pessoas e da vida culminaram em cidades focadas nos automóveis. As ruas das nossas cidades não são amigáveis para quem caminha ou pedala. É necessário investir em infraestrutura, segurança (pública e viária), transporte coletivo de média e alta capacidade de qualidade para quem não usa carro ou moto (maioria da população). Outro fator crucial para diminuir mortes é a redução das velocidades máximas nas vias, onde existe trânsito simultâneo de pessoas e veículos. Essa é uma das 18 resoluções para melhorar a segurança no trânsito propostas pela “Declaração de Estocolmo”, vinculando o tema aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. É urgente que os gestores públicos mudem a lógica de planejamento e incluam os modais ativos como parte integral nos sistema de transporte.”
Ana Carboni, diretora financeira da UCB (União de Ciclistas do Brasil)
“O maior desafio de aumentar a segurança no trânsito no Brasil e reduzir a morte de ciclistas, pedestres e motoristas, é a raiz cultural muito forte do uso do carro. Além das mudanças de engenharia de trânsito e infraestrutura necessárias, é preciso modificar costumes e conceitos muito enraizados na população.
Existe uma cultura muito forte de proteção e incentivo ao uso do carro. O papel cultural e de status que o uso do carro tem criaram um ambiente de muita produção técnica de incentivo ao uso do carro e um ambiente de defesa. Assim, temos uma engenharia de tráfego que incentiva altas velocidades, dedica todo espaço viário ao carro, e por outro lado, uma cultura que, por exemplo, critica a fiscalização das imprudências no trânsito.
Precisamos rever as técnicas do setor, incentivar a redistribuição do espaço viário incentivando o uso da bicicleta e o caminhar, gerando um desenho viário que induz à redução de velocidades, e, por outro lado, responsabilizar com rigor as ações imprudentes.”
Rafael Calabria, coordenador de mobilidade do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor)
“O caminho para pararmos de matar tantos ciclistas é reconhecer a bicicleta como um modo de transporte que traz benefícios para toda a sociedade e não só para os ciclistas. A bicicleta é um dos veículos mais eficientes já inventados, em especial para distâncias curtas, entre 5 e 8 km. Traz benefícios à saúde, ao meio ambiente e à economia, além de promover a inclusão social. Governos municipais devem agir para cumprir a nossa legislação e garantir que ela seja efetivamente priorizada nas nossas cidades. A redução dos limites de velocidade e a redistribuição do espaço da rua, garantindo a implantação de infraestrutura segura, são medidas essenciais para que tenhamos cidades pedaláveis, que não ceifam vidas em vão.”
Danielle Hoppe, gerente de mobilidade ativa do IDTP Brasil (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento)
“Para reduzir as mortes e lesões de ciclistas, é preciso projetar as ruas de modo que o erro humano não resulte em sinistros graves ou fatais. Por isso, deve-se adotar uma abordagem de Sistema Seguro ao se projetar o espaço viário. Um sistema de mobilidade seguro considera que as pessoas são vulneráveis e que erros no trânsito são inevitáveis, mas as mortes e lesões graves não deveriam ser.
Uma medida crucial é a redução da velocidade nas vias urbanas, um dos principais fatores de risco em sinistros de trânsito. Áreas de trânsito calmo, com intervenções como lombadas e extensões de calçadas, são efetivas em reduzir velocidades, melhorar a segurança e qualificar o ambiente para os ciclistas e os pedestres.
Precisamos de boas ciclovias. Novas infraestruturas para bicicleta atraem novos ciclistas, muitos inexperientes, e devem ser implantadas seguindo diretrizes de desenho seguro. Em Buenos Aires, houve aumento de 45% no número de ciclistas após a implantação de ciclovias nas avenidas Córdoba e Corrientes durante a pandemia.”
Paula Santos, gerente de mobilidade ativa do WRI Brasil
“Diversas são as ações necessárias para que, efetivamente, possamos reduzir o volume de morte de ciclistas. É importante atentarmos para a fiscalização que incorre sobre os veículos motorizados, pois são responsáveis pela maior parte dos óbitos de ciclistas no trânsito. É preciso melhorar a infraestrutura cicloviária, ampliá-la, criar suas conexões. É urgente reduzir as velocidades dos motorizados e fiscalizar essa redução, tanto no perímetro urbano como nas estradas do país, onde muitos ciclistas circulam. Além disso, faltam políticas que garantam circulação de ciclistas de forma segura em pequenas e médias cidades, principalmente no deslocamento entre elas. Analisando dados brutos do DataSus, verificamos que entre 2010 e 2019, em média, mais de 70% dos óbitos com ciclistas ocorreram em cidades com menos de 500 mil habitantes.”
Victor Callil, coordenador de pesquisa do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)
“Entre municípios e distritos, em rodovias e estradas vicinais onde os automóveis andam em velocidades mais altas, a infraestrutura cicloviária é a ferramenta mais efetiva contra atropelamentos e mortes de ciclistas. A malha cicloviária intermunicipal dos países baixos é uma grande referência e o Brasil ainda tem muito que melhorar nesse quesito.
No ambiente urbano, porém, não podemos deixar de considerar o papel dos motorizados na letalidade de pedestres e ciclistas. Ciclovias são importantes na prevenção de atropelamentos em vias expressas e arteriais, porém a principal ferramenta para tornar as cidades mais seguras é a redução de velocidade .
As cidades foram feitas para deslocamentos de baixa velocidade, porém com a popularização dos automóveis no século passado, foram se adaptando de maneira errada e os automóveis passaram a ser o centro das atenções.
A pesquisa OD de São Paulo aponta que 51% das viagens de motorizados percorrem até 3,5 km e 70% das viagens até 7 km, ou seja, são viagens facilmente realizáveis por bicicleta. É preciso reduzir o espaço dos automóveis, priorizar o transporte coletivo e aumentar o espaço e a segurança de pedestres e ciclistas.”
Luiz Marcelo T. Alves, consultor em engenharia de transportes da Compasso Mobilidade
“Primeiramente, é preciso desconstruir a ideia de que mortes no trânsito são acidentes. O Brasil é o terceiro país com mais óbitos, de acordo com Global Status Report on Road Safety 2018 (OMS), que poderiam ser evitados. A solução requer que agentes políticos deem centralidade à segurança viária em suas agendas para que políticas públicas, como de fiscalização rígida, educação no trânsito, formação de condutores de veículos eficientes, redução de velocidade e planejamento de uso do solo sejam elaboradas a partir da abordagem da integração multimodal da bicicleta.
No Rio de Janeiro, segundo o ITDP, as taxas de mortalidade entre ciclistas diminuíram desde 2010, mas ainda são insuficientes. Em contrapartida, vem crescendo o número de pessoas negras mortas em sinistro de trânsito.
De acordo com o PMUS/RJ, a ampliação e a manutenção de ciclovias garantem maior segurança para os ciclistas, mas é necessário que sua distribuição seja feita de maneira menos desigual, observando recortes como de classe, raça e gênero. Para isso, o poder público, sociedade civil e setor privado, com auxílio de tecnologias, devem trabalhar para reduzir o número de mortos e feridos no trânsito.”
Tatiane Torres, pesquisadora em políticas de mobilidade por bicicleta e gerente da Lemobs