Linha de produção da Ford em Camaçari: incentivos fiscais não impedem fim de história de 20 anos
A Ford anunciou na segunda-feira, 11, o que alguns temiam e poucos acreditavam que pudesse de fato acontecer: o fim da produção no Brasil, após mais de um século de manufatura industrial no País, o que deve resultar na demissão de 5 mil empregados e custos de US$ 4,1 bilhões. A empresa informou que o impacto da pandemia de coronavírus aumentou sua ociosidade industrial em níveis considerados inaceitáveis, o que motivou a decisão para reduzir perdas.
A marca seguirá no mercado brasileiro com a venda de produtos importados, mas a fabricação de veículos e motores/transmissões, respectivamente em Camaçari (BA) e Taubaté (SP), será interrompida imediatamente com o fim das vendas do Ka e EcoSport assim que terminarem os estoques. Linhas de componentes das duas plantas serão mantidas pelos próximos meses para abastecer o mercado de reposição.
O utilitário 4×4 Troller T4 também sai de linha, mas a planta em Horizonte (CE) permanecerá em atividade até o quarto trimestre de 2021, provavelmente para atender legislação de isenções fiscais à qual a companhia se submeteu na Região Nordeste quando adquiriu a pequena operação cearense e sua carta de incentivos tributários em 2007.
Em comunicado distribuído à imprensa, a Ford reconhece que o encerramento de suas operações de manufatura irá custar cerca de US$ 4,1 bilhões em despesas não recorrentes, incluindo US$ 2,5 bilhões em 2020 e US$ 1,6 bilhão em 2021. “Aproximadamente US$ 1,6 bilhão será relacionado ao impacto contábil atribuído à baixa de créditos fiscais, depreciação acelerada [de ativos] e amortização de ativos fixos. Os valores remanescentes de US$ 2,5 bilhões impactarão diretamente o caixa e estão, em sua maioria, relacionados a compensações, rescisões, acordos e outros pagamentos”, informa a nota.
A empresa informou ainda que manterá em funcionamento sua sede regional administrativa na capital paulista, além do Centro de Desenvolvimento de Produto na Bahia e o Campo de Provas em Tatuí (SP), dando a entender que continuará a conduzir atividades de engenharia no País, especialmente para adaptação de produtos importados.
DEMISSÕES
“Trabalharemos intensamente com os sindicatos, nossos funcionários e outros parceiros para desenvolver medidas que ajudem a enfrentar o difícil impacto desse anúncio”, afirmou no comunicado Lyle Watters, presidente da Ford América do Sul e Grupo de Mercados Internacionais. A empresa informa que atualmente tem 6.171 funcionários no Brasil e a decisão de encerrar as atividades de manufatura irá implicar no desligamento de cerca de 5 mil empregados, incluindo uma parte deles na Argentina.
O maior impacto será na planta de Camaçari, onde a montadora empregava até o meio de 2020 cerca de 6,5 mil pessoas – sendo 3,5 mil delas em fornecedores, empresas que desde a inauguração da unidade, em 2001, operavam com seus funcionários diretamente na linha de montagem dos veículos. Desde março passado, 1,45 mil empregados estavam afastados em layoff e agora devem ter seus contratos encerrados definitivamente. Com capacidade para produzir 250 mil carros/ano, a planta baiana mal passou de 130 mil em 2020.
Em agosto a Ford negociou com o sindicato local um acordo que previa estabilidade no emprego de quatro anos, que agora obviamente não pode ser cumprido. Em outubro passado foi aberto um programa de demissões voluntárias na fábrica que previa indenizações extras de R$ 28 mil até R$ 93 mil para quem aceitasse sair (leia aqui).
Na fábrica de motores e transmissões de Taubaté a Ford emprega cerca de 1 mil pessoas e há pouco anos, em 2018, finalizou programa de investimento que digitalizou as linhas de produção com sistemas de manufatura 4.0. A unidade vai encerrar as atividades produtivas e demitir os funcionários após 52 anos em operação.
Já a planta cearense da Troller em Horizonte emprega apenas 470 pessoas, nível de emprego que foi mantido devido às obrigações legais que a Ford assumiu ao comprar a unidade e sua carta de incentivos fiscais em 2007, que passaram a ser aplicados também em Camaçari, com regime tributário especial que praticamente isenta a companhia do IPI sobre os carros produzidos na Região Nordeste – o que à luz da decisão de encerrar a produção em ambas as unidades comprova que não foi suficiente para tornar as operações lucrativas.
DESINVESTIMENTO E BUSCA POR RENTABILIDADE
Lyle Watters justificou a decisão de encerrar as atividades de manufatura no Brasil para recuperar a rentabilidade da empresa na região, em alinhamento com o objetivo global da companhia de atingir margem de lucro EBIT (antes de impostos e despesas financeiras) de 8% sobre o faturamento e gerar fluxo de caixa forte e sustentável.
“Nosso time da América do Sul fez progressos significativos na transformação das nossas operações, incluindo a descontinuidade de produtos não lucrativos e a saída do segmento de caminhões. Além de reduzir custos, lançamos novos produtos e serviços inovadores na região. Esses esforços melhoraram os resultados nos últimos quatro trimestres, mas a continuidade do ambiente econômico desfavorável e a pressão adicional causada pela pandemia deixaram claro que era necessário muito mais para criar um futuro sustentável e lucrativo”, explicou Lyle Watters em nota.
Em uma escalada de desinvestimento no País e encerramento de atividades não lucrativas, o anúncio da Ford acontece menos de dois anos após a companhia comunicar que iria fechar a fábrica de São Bernardo do Campo (SP), em fevereiro de 2019, com o encerramento das linhas de produção de caminhões e do Fiesta e custos de US$ 460 milhões com indenizações e contabilização de baixas de ativos. A unidade do ABC paulista foi definitivamente fechada em outubro de 2019 e um ano depois as instalações foram vendidas para a Construtora São José por R$ 550 milhões, segundo valor informado pela prefeitura (leia aqui).
Segundo informa o comunicado da Ford, o “futuro sustentável e lucrativo” no Brasil de agora em diante será alcançado com a venda de produtos importados em sua rede de 282 concessionárias – que dificilmente seguirá com o mesmo tamanho. Watters chama o novo portfólio de “linha empolgante e robusta de SUVs, picapes e veículos comerciais conectados e eletrificados”. Isso inclui o SUV Territory importado da China desde 2020, a picape Ranger produzida na Argentina – onde a planta de Pacheco seguirá em operação e a montadora anunciou em dezembro que investirá US$ 580 milhões para produzir a nova geração do modelo em 2023 (leia aqui) – e o utilitário Transit que a partir deste ano passa a ser montado no Uruguai em linha alugada da Nordex, com investimentos anunciados de US$ 50 milhões (leia aqui).
Também está confirmada a importação este ano do relançado SUV Bronco e do esportivo Mustang Mach 1. A montadora promete ainda anunciar em breve o lançamento de outros modelos totalmente novos, incluindo um modelo híbrido plug-in. “Isso se alia à expansão de serviços conectados e de novas tecnologias autônomas e de eletrificação nos mercados da América do Sul”, informa Watters.
Claramente, a estratégia é focar em produtos de maior valor agregado e estancar prejuízos no País. No ano passado, com a decisão de reduzir as vendas diretas menos lucrativas, a Ford foi uma das marcas que mais perdeu participação de mercado, de 8,22% em 2019 para 7,14% em 2020, com o total de 139 mil emplacamentos e forte queda de 36% sobre o ano anterior. Conseguiu manter-se na quinta posição entre as mais vendidas do País, com o hatch Ka na condição de quinto carro mais emplacado (foi o segundo um ano antes), mas entregando baixa margem de lucratividade. De agora em diante, os volumes da Ford no Brasil devem despencar, ainda que com lucro maior por unidade comercializada.