Pandemia vai deixar como herança uma série de desafios para a mobilidade

A Covid-19 causou quedas drásticas no uso de todas as modalidades de transporte. Quando ela passar, nem tudo será como antes

Redacao AB

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A Covid-19 causou quedas drásticas no uso de todas as modalidades de transporte. Quando ela passar, nem tudo será como antes

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Com as vítimas fatais batendo em 300 mil, os sistemas de saúde em colapso, diversos estados brasileiros em fase vermelha da quarentena e a vacinação progredindo a conta-gotas, a pandemia já se transformou em um dos momentos mais sombrios da história do Brasil. Bom, essa é a parte que já conhecemos. Mas qual será o legado da Covid-19 para a mobilidade urbana?

As projeções indicam um futuro nem melhor e nem pior, mas diferente: enquanto problemas antigos devem continuar, como a defasada malha metroviária nas capitais brasileiras, outros devem se alterar, como o trânsito, que pode ficar pior com a maior demanda por transporte individual. Afinal, em algum momento a população que está trancada em casa lavando as compras com detergente e usando uma máscara em cima da outra vai voltar a circular.

Mas, antes de ver como será o futuro, é preciso olhar para o presente. Afinal, como a pandemia mudou a mobilidade urbana?

MENOS GENTE, MENOS CAOS

Assim que a pandemia começou, as principais capitais brasileiras observaram uma queda imediata no uso de praticamente todas as formas de transporte. Um estudo ainda não concluído feito pelo instituto de pesquisa WRI Brasil em parceria com o Centro de Excelência BRT+ (braço de pesquisa e educação da Volvo) aponta que, em setembro e outubro de 2020, mais de 50% dos usuários de transporte não estavam mais nas ruas.
As mudanças são claras: o transporte coletivo caiu em todas as praças. A demanda por ônibus, BRT, lotação, metrô, trem e VLT encolheu em mais de 40%. Em São Paulo a redução foi ainda mais dramática: antes da pandemia, os coletivos respondiam por 59% dos deslocamentos e, depois, por apenas 8%. Guillermo Petzhold, coordenador de mobilidade urbana do WRI Brasil, fala a respeito:

“A lotação do transporte coletivo agora é percebida de outra forma pelas pessoas. Se antes ela impactava a percepção de conforto, agora também pode se traduzir em medo de contágio”, acredita ele.

Os números mostram que, quando as pessoas começaram a voltar às ruas no início de 2021, antes das restrições mais severas impostas pelos governos estaduais a partir do final de fevereiro, a confiança no transporte coletivo continuou em baixa. “Antes do aumento de casos e novas restrições, o transporte coletivo alcançou apenas entre 60% e 70% da demanda do período pré-pandemia, enquanto os outros meios de transporte já haviam voltado aos patamares anteriores”, conta Petzhold.

O aplicativo Moovit também monitora o uso de transporte público por meio de um gráfico atualizado periodicamente em seu site. Dez regiões metropolitanas brasileiras são acompanhadas. Por ele, é possível perceber que o uso dos modais coletivos caiu drasticamente em março de 2020 e foi se recuperando gradativamente, até sofrer novas quedas no fim de dezembro, no fim de janeiro e no fim de fevereiro.

HOME OFFICE VEIO PARA FICAR: E AGORA?

No contexto de pandemia, entrou em cena um fator para o qual boa parte do empresariado brasileiro virava o rosto: o home office (ou teletrabalho, no jargão legislativo). Segundo o estudo da WRI Brasil, mais de 50% dos entrevistados de quatro capitais (São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Porto Alegre) passaram a trabalhar de casa durante a quarentena. Em Fortaleza, foram 37%.

Segundo o IBGE, durante a pandemia, o uso de home office quase triplicou em todo o país em maio de 2020, passando de 5% para 13% dos trabalhadores. Em janeiro de 2021, esse número já havia caído para 9%, mas ainda acima da média pré-pandemia.

Essa é uma tendência que deve continuar. Uma pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) demonstrou que 22% das profissões brasileiras podem ser exercidas de forma remota, o que equivaleria a 22 milhões de postos de trabalho sendo alocados em domicílios. O professor André Miceli, coordenador do MBA em Marketing e Inteligência de Negócios Digitais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), publicou um estudo em que projeta um crescimento definitivo de 30% na adoção do home office após a retomada das atividades.

Pesquisa feita pela Owl Labs em 2019 apontou que 71% dos entrevistados afirmavam ser mais felizes trabalhando de casa. E sabe qual é a questão que pesa mais nessa preferência? Isso mesmo, a mobilidade. Uma pesquisa da consultoria Robert Half realizada em março de 2020 apontou que 53% dos profissionais em home office entrevistados pontuaram o tempo economizado com deslocamentos como o principal benefício do modelo.

“Nos resultados preliminares da nossa pesquisa, levantamos que, em média, um regime ideal seria composto de três dias de trabalho remoto durante a semana”, afirma Petzhold.

Ele argumenta que essa tendência pode gerar efeitos na mobilidade, mas que, na mesma medida, pode haver uma contrapartida. “No limite, mesmo com menos gente na rua, poderemos ter os mesmos níveis de congestionamento em função do efeito que chamamos de demanda induzida. Em síntese, significa que a oferta de infraestrutura adicional – nesse caso dada pela queda da demanda e não pelo alargamento de vias – tende a ser acompanhada pela ocupação desse espaço por mais carros”, explica.

MEU CARRO, MINHA BOLHA

No que diz respeito ao transporte, um dos efeitos mais visíveis da pandemia foi no uso do automóvel. A pesquisa da WRI Brasil mostra que, embora todos os tipos de deslocamentos tenham caído, as viagens com carro diminuíram menos que as outras e, por isso, subiram em proporção no total de viagens. O uso de aplicativos de viagens, como Uber e Cabify, também cresceu.

“O mais evidente é que as pessoas que retomaram as atividades estão voltando mais para as ruas de carro”, afirma Douglas Tokuno, head de parcerias da Waze Carpool para a América Latina.

“E isso não apenas para deslocamentos diários, mas também em substituição às viagens antes feitas de avião, trem e ônibus como uma alternativa mais segura. Os meios que costumavam ser opções de transporte eficientes e de baixo custo agora são vistos como ambientes desafiadores pelas dificuldades de manter o distanciamento social”, explica ele.

“Mais gente buscou os carros para evitar aglomerações”, concorda Pedro Palhares, gerente geral do Moovit no Brasil. “Fizemos uma pesquisa no ano passado, apresentada em um evento com a Anfavea, e dos nossos usuários que usam carro durante a pandemia, 34% fazem esta opção para reduzir risco de contaminação. O mesmo levantamento mostra um crescimento no uso de serviços de carona por aplicativo”, conta ele.

Segundo Tokuno, os números pré-pandemia apontavam uma queda na busca por carros entre as gerações mais jovens. Depois da pandemia, porém, o cenário mudou completamente. “Ainda em março do ano passado, uma pesquisa da Ipsos já apontava a tendência de que as pessoas migrariam de forma massiva do transporte coletivo para o deslocamento com carro na China”, conta ele.

“Há previsões de que quem pode comprar carro acabará substituindo outros meios pelo automóvel para esses deslocamentos de rotina”, afirma o executivo do Waze.

Mais carros na rua significa mais trânsito, mais acidentes e mais tempo gasto com deslocamentos. Significa também mais desigualdade social – segundo dados de 2020 do Ipea, nas 20 maiores cidades do país, cerca de 228 mil pessoas acima de 50 anos de idade e de baixa renda estão a mais de 30 minutos de caminhada até uma unidade de saúde.

Essas pessoas não têm a opção de comprar carro para se isolar do vírus – elas dependem do transporte público. Só que ele também está em colapso…

A CRISE DOS ÔNIBUS

A esmagadora maioria das cidades brasileiras usa concessões para suas linhas de ônibus – ou seja, cede a operação das linhas para empresas privadas, que em troca podem cobrar passagem.

Com a queda nos deslocamentos, o impacto econômico sobre essas empresas é devastador. De acordo com o levantamento Impactos da Covid-19 no Transporte Público por Ônibus, produzido pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), as empresas de ônibus tiveram um prejuízo acumulado de R$ 9,5 bilhões no período entre 16 de março e 31 de dezembro de 2020.

A queda é causada principalmente pela redução no número de passageiros, uma vez que a receita tarifária é a principal, e às vezes a única, fonte de receita das empresas operadoras de transporte. Segundo o relatório, a quantidade de viagens chegou a cair 80% nas primeiras semanas da crise. Em dezembro, a redução média verificada foi de 39,1%.

O IMPACTO DA COVID NO TRANSPORTE PÚBLICO POR ÔNIBUS

O mapa abaixo mostra as quedas em demanda (cor roxa) e oferta (cor azul) em capitais e regiões metropolitanas em dezembro:
Além da redução na receita, o setor também está sofrendo com demissões e greves causadas pelos cortes e por salários atrasados – tudo consequência direta da pandemia.

E O FUTURO?

Os especialistas ouvidos por Automotive Business são unânimes em dizer que, após a pandemia, problemas antigos da mobilidade urbana brasileira podem voltar com força total, ou mesmo mais fortes, caso o poder público não aproveite o momento para tentar passar medidas que beneficiem esse setor.

Douglas Tokuno, do Waze, acredita que a principal tendência para o pós-pandemia é a maior disposição do público para o uso combinado de diferentes modais. E, entre esses modais, crescerão mais a carona compartilhada e as viagens por aplicativo.

“Pelo perfil de comportamento da geração Z, entendemos que esses motoristas mais jovens, que também estarão mais motorizados, serão os responsáveis por impulsionar o hábito da carona no pós-pandemia. Antes do surto da covid, já tínhamos começado a observar um aumento do comportamento da ‘economia compartilhada’”, conta Tokuno, do Waze.

A empresa também criou novas funcionalidades para ajudar sua base de usuários, como alertas em tempo real sobre bloqueios de vias, informações sobre centros de testes de Covid-19 e locais de distribuição de alimentos, atualização de endereços de serviços importantes (como hospitais) e dados sobre serviços de drive-thru e de retirada sem contato.

“A pandemia escancarou todos os debates que já ocorriam, como o caso do financiamento do transporte coletivo e seus modelos de contratos de concessão”, afirma Petzhold, da WRI Brasil.

“É urgente a discussão e definição de novas fontes de recursos que financiem o transporte coletivo. Tributar as externalidades negativas causadas pelo uso dos veículos privados e prever regulamentações urbanísticas que capturem a valorização imobiliária advinda da implementação de infraestrutura de transportes são algumas ações já adotadas no exterior e em poucas cidades brasileiras que podem ser mais difundidas e aprimoradas”, sugere ele.

Ele também cita outras medidas que sempre foram muito discutidas para melhorar a mobilidade urbana, como o aumento das faixas de ônibus, o escalonamento de horários de entrada/saída por áreas da cidade, medidas que estimulem o uso da bicicleta e da caminhada e a adoção generalizada do home office.

Pedro Palhares, do Moovit, faz coro pelo investimento em transporte público. “Nosso relatório global dá algumas pistas: 53% dos brasileiros pedem mais veículos em operação para reduzir os intervalos, 50% gostariam de ter informações em tempo real sobre a localização dos ônibus e 45% querem veículos mais vazios”, relata ele. “O passageiro deve enxergar o transporte público como uma boa opção, e não usá-lo só porque não tem outra escolha”, defende.