Catena-X: o que está por trás do supergrupo formado por VW, BMW, ZF, Mercedes e outras alemãs

Rede de dados internacional servirá para tornar a experiência do cliente mais segura e para auxiliar no processo de descarbonização; Cade ainda tem dúvidas

Marcus Celestino

Marcus Celestino

Rede de dados internacional servirá para tornar a experiência do cliente mais segura e para auxiliar no processo de descarbonização; Cade ainda tem dúvidas

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Quando perguntado sobre o Catena-X, joint venture que reúne 11 empresas alemãs de presença global e com operações no Brasil, Philippe Colpron, vice-presidente executivo do grupo ZF, respira, reflete, e escolhe suas palavras com precisão. “Eu não usaria o termo joint venture”, responde, em inglês, calmamente. “O esforço em conjunto [entre as empresas] não é algo novo. Também não são novos os padrões definidos para que, de modo colaborativo, possamos trabalhar por boas práticas na indústria”, complementa.

O executivo de 42 anos reservou espaço em sua agenda para conversar com a reportagem deste Automotive Business durante a Automechanika Frankfurt 2022


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Mas, afinal de contas, o que é Catena-X e quais empresas embarcaram neste projeto? Conforme já mencionamos, em matéria publicada no início de agosto, trata-se de uma rede gerenciada em nuvem privada para o setor automotivo. Dessa forma, as companhias poderão trocar informações sobre a cadeia produtiva de modo padronizado. Fazem parte do grupo, além da ZF, Volkswagen, Mercedes-Benz, BMW, Bosch, Schaeffler, Siemens, T-Systems, Henkel, Basf e SAP.

Na Alemanha, a união entre as empresas passou sem maiores problemas. Vale, contudo, frisar que o governo daquele país também está envolvido no projeto. O grupo também pediu a aprovação do Catena-X em outras regiões nas quais têm operações. E é aí que o Brasil entra na equação. 

Aqui, a superintendência-geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) havia aprovado a iniciativa. A chamou, inclusive, de joint venture. “As requerentes destacaram que a joint venture tem como objetivo a criação de uma rede gerenciada em nuvem, com amplo acesso a todos os players do setor automotivo e seus respectivos parceiros que desenvolvam atividades ao longo da cadeia produtiva do setor automotivo, possibilitando o processamento de dados e, assim, o aprimoramento de suas tomadas de decisão”, detalha documento do órgão.

Catena-X sob pressão

Todavia, assim como num longa-metragem de M. Night Shyamalan, vemos um plot twist de última hora na união entre as empresas no Brasil. Gustavo Augusto Freitas de Lima, conselheiro do Cade, pediu mais tempo de análise para o projeto. Em publicação no Diário Oficial da União, datada de 6 de setembro, o especialista solicitou que as requerentes respondessem alguns de seus questionamentos em 15 dias corridos. Além disso, pede a conversão do atual procedimento de sumário para ordinário – o que pode aumentar em cerca de 180 dias o prazo para autorizar a formação do supergrupo de empresas alemãs no país.

Segundo Philippe Colpron, head da ZF, o Catena-X “respeita todos os importantes valores de privacidade de dados e cibersegurança”. Além disso, a união, para ele, “melhora consideravelmente a experiência do cliente”.

“O projeto claramente respeita leis de proteção de dados europeias e brasileiras, e segue princípios de comunidade para perenização de negócios”, defende o executivo.

Colpron também faz questão de enfatizar, e exaltar, a iniciativa de inovação aberta realizada pelas companhias. Também reforça que a ZF dá todo o suporte ao projeto. “[O Catena-X] entrega mais valor às frotas. Conseguimos prover mais segurança aos nossos clientes e agregamos valor. Estamos muito felizes em poder contribuir com novas soluções capazes de tornar o transporte mais seguro, limpo e eficiente”, enfatiza.

Sobre a segurança dos dados, o executivo volta a dizer que a ZF, tal qual seus pares, respeita as leis vigentes. “Sabemos que temos de dar aos veículos proteção mais do que suficiente em termos de cibersegurança. Não queremos criar risco algum aqui. No futuro, leves e pesados serão naturalmente conectados. Teremos que manter softwares atualizados durante a vida do produto e temos certeza que, na ZF, temos arquitetura capaz de realizar atualizações constantemente”, ressalta Colpron.

Preocupação com a livre concorrência

Para finalizar, o vice-presidente executivo do grupo garante que esta também “é uma oportunidade para mecânicos, oficinas e empreendedores para contribuir em termos de melhorias veiculares”. Até aí, tudo bem, mas este não é o temor do Cade.

Fonte ligada à autarquia, ouvida por este Automotive Business, afirma que montadoras e sistemistas alemães, assim como o governo do país europeu, têm deixado o Cade às escuras. O temor, para esta fonte, é que a joint venture só tenha sido solicitada em nosso país para postergar ao máximo o processo de eletrificação da frota e, pior, controlar preços.

“O lobby pelo etanol, hoje, é notório. Não somos especialistas, como vocês, mas entendemos que os alemães estão atrás dos japoneses e chineses na tecnologia híbrido flex no Brasil. Por isso, para eles, a manutenção do status quo no Brasil é extremamente importante”, diz a fonte. “Aqui ainda temos outro agravante para esse grupo, que é o domínio dos tentáculos da Stellantis no mercado”, completa.

Sem ativos no Brasil, mas não 100% independente

Durante a entrevista, não houve tempo para Colpron detalhar como funcionará o software e o hardware da Catena-X. Conforme mencionado pelo relator do Cade, as empresas não forneceram informações concretas acerca disso. Como nossa última matéria sobre o tema desenhou, além das informações superficiais sobre como estes dados serão manipulados, não há descrição suficiente dos papéis que as empresas desempenharão na joint venture.

Consta, contudo, que cada uma delas terá participação de 9,1% do capital da nova companhia. O texto diz, ainda, que a JV, em seus primeiros três anos de operação, não terá foco nem ativos no Brasil. 

Reynaldo Contreira, head de aftermarket da ZF no país, comenta que “sem dúvidas, de uma maneira geral, tanto produto quanto serviço desenvolvidos na Alemanha têm um impacto no Brasil”. E acrescenta: ” Mesmo que não exista a conexão entre os governos, [o Catena-X] vai acontecer de maneira natural entre as empresas”, ressalta o executivo.

Ainda de acordo com Contreira, “as experiências da ZF no país serão trocadas com a matriz”. No entanto, além de destacar que isso será uma via de mão dupla, a fim de otimizar a experiência do cliente, enfatiza que tudo “ocorrerá dentro da Lei Geral de Proteção de Dados”.

“No fim das contas, o que queremos atingir é um transporte mais eficiente, seguro, mais limpo. Portanto, existem muitas coisas que temos que construir para chegar a isso”, aponta Contreira, no caso, destacando que o Catena-X é um destes elementos.

Bosch se esquiva sobre Catena-X

Fonte da Bosch, que gentilmente atendeu Automotive Business durante a Automechanika, se esquivou sobre questões acerca do Catena-X. Em anonimato, um outro representante da companhia apontou:

“O que mais preocupa as autoridades brasileiras é a presença do governo alemão no projeto”, comenta o membro de alto escalão da empresa. “Não que o projeto seja algo ruim. Muito pelo contrário. Os benefícios para os consumidores são inestimáveis. A questão é que usaremos esses dados internamente, e isso, sob ponto de vista diplomático, é benéfico para a Alemanha”, finaliza.

Ao ouvir as fontes, entendemos os motivos que levaram o Cade a pedir mais prazo e informações para aprovar a joint venture. Falta esclarecimento sobre quais operações a JV exercerá no Brasil a médio prazo, suas medidas de controle externo e, especialmente, a participação de representantes do governo alemão na empreitada. Portanto, por ora, a utopia vendida soa mais como uma estratégia a fim de garantir soberania do que algo que atenderá, de fato, a quem importa: os clientes. 

Resposta da Bosch

Em comunicado enviado pela matriz a esta publicação, a Bosch “reforça seu compromisso com a rede automotiva Catena-X”. A empresa salienta ainda que a “rede automotiva Catena-X e o consórcio Catena-X, juntamente com a adição de novas empresas em caráter operacional, completarão triângulo que formará um ecossistema aberto para troca de informações de modo eficiente e seguro entre companhias da indústria automotiva.”

A Bosch ressalta que “um grupo de integrantes da Catena-X já assinou acordo que garante a escalabilidade a longo prazo do ecossistema”. No comunicado, a empresa não cita nominalmente quais ou quem são estes membros. Além disso, pontua que “criação da joint venture está sujeita à aprovação regulatória” e que “maiores detalhes serão tornados públicos em momento oportuno”.

Automotive Business segue aberto para retorno de todas as companhias envolvidas no projeto Catena-X e seus desdobramentos em território nacional. 

Texto atualizado na sexta-feira, 16/9, com resposta da Bosch.