Motor flex: o que falta para o etanol ser escolhido na bomba?

Na série de reportagens sobre os 20 anos da tecnologia flex, especialistas apontam preço e distribuição como entraves à massificação do combustível

Bruno de Oliveira

Bruno de Oliveira

Na série de reportagens sobre os 20 anos da tecnologia flex, especialistas apontam preço e distribuição como entraves à massificação do combustível

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Era início da tarde quando o marcador do combustível indicava que era preciso abastecer. Já havia percorrido mais de 250 quilômetros desde que deixei Porto Alegre rumo a Pelotas a bordo de um Peugeot 2008. Ao entrar na cidade que fica ao sul do Rio Grande do Sul, avistei um posto. “Completa com etanol, por favor”, pedi ao frentista. “Desculpe, mas nós não temos”, respondeu o rapaz.


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Foi a primeira vez na vida que ouvi isso. Não havia etanol no posto, algo muito incomum em São Paulo, cidade onde moro desde que nasci. “Está em falta?”, perguntei ao frentista, ainda acreditando que poderia ter ocorrido um problema de distribuição no estado. “Não, a gente não trabalha com etanol mesmo. Ninguém por aqui abastece o carro com álcool”, seguiu o funcionário.

Completei o tanque com gasolina e segui viagem pensando na situação. Por que a demanda por etanol estaria tão baixa a ponto de não haver a oferta do combustível no posto? Seria uma questão de logística, de preço de tabela ou de preferência do consumidor mesmo? É uma situação específica do mercado gaúcho ou haveria outras praças onde apenas se vende gasolina e diesel?

Na volta da viagem, decidi apurar as informações e procurei primeiro a Anfavea, a associação que representa os produtores de veículos no país. Afinal, me parecia curioso não existir etanol em certas regiões, ainda que cerca de 80% da frota circulante de veículos leves seja formada por veículos equipados com tecnologia flex fuel, que completa 20 anos de vida no Brasil este ano.

“Para o etanol estar disponível a toda frota, vários fatores tem que ser analisados. Mas, a princípio, há um entrave logístico que o impede de chegar em muitas cidades. O custo de distribuição do etanol vai ficando mais caro, na comparação com a gasolina, à medida que o posto vai ficando distante das áreas de produção de cana, que estão concentradas no sudeste”, disse Henry Joseph Junior, o diretor técnico da associação que representa as montadoras no país.

O quadro, segundo ele, é considerado preocupante uma vez que inviabiliza um dos anseios do país em termos de descarbonização: se o etanol é considerado um importante trunfo na busca por redução de emissões veiculares de CO² na atmosfera, não tê-lo disponível a todos os consumidores se torna um grande entrave para que as metas de neutralidade de carbono sejam atingidas no prazo que o Estado estabeleceu, até 2050.

O representante da área técnica da Anfavea contou, ainda, que esse fator logístico é considerado pelos distribuidores na composição do preço final do etanol no país, o que nos leva a um outro cenário que limita o acesso do consumidor a este biocombustível.

“Com o preço próximo ao da gasolina, o etanol perde competitividade. Uma vez que o consumidor sabe fazer o cálculo do consumo por quilômetro rodado, ele percebe que na maioria dos casos a gasolina acaba sendo uma opção economicamente melhor na comparação com o etanol”, contou Henry.


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Políticas ambientais devem mexer com o bolso

Financeiramente pode até ser, mas não ambientalmente. No ciclo do poço à roda, a gasolina é mais poluente do que o etanol, mas tanto o governo quanto as montadoras sabem que o brasileiro se inclinará ao uso do etanol por meio de um custo baixo, e não apenas por apelos socioambientais.

“Cem por cento dos automóveis produzidos no país são flex e 74% da frota circulante é formada por esses modelos. O consumo do etanol na frota, no entanto, está em torno de 30%. Se tivéssemos uma política que reduzisse o preço, esse porcentual aumentaria porque o brasileiro é sensível ao bolso”, disse o diretor técnico da Anfavea.

Outra fonte que defende a aplicação de políticas públicas — afora o Renovabio, programa que já está sendo aplicado no Brasil — é Raquel Mizoe, diretora da Associação de Engenharia Automotiva, a AEA. “Redução de preço é política pública, não é algo relacionado às montadoras, porque é algo que está nas mãos de quem produz a cana”, disse a diretora.

Segundo cálculos da associação, com base em dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o porcentual de veículos que consomem etanol na frota circulante pode aumentar dos atuais 30% para cerca de 48% até 2032 caso sejam feitas alterações na tabela de preço do combustível.

Para se chegar a esse patamar de uso do etanol na frota, o estudo conduzido pela EPE no final do ano passado conclui que a crescimento se dará “por meio de políticas do setor voltadas à redução de custos e de incentivo ao etanol, como diferenciações tributárias e contributivas, disponibilização de linhas de financiamento para o setor, dentre outras”.

Para aumentar o porcentual para além deste patamar, seguiu a diretora da AEA, seria preciso também tornar as características do etanol mais conhecidas no país — o combustível estaria evoluindo em termos de oferta de autonomia na comparação com a gasolina. “Se fala muito que a gasolina dura mais no tanque do que o etanol, mas isso está mudando com o desenvolvimento de novas gerações do combustível”, explicou Raquel.

Afora o desenvolvimento de novas fórmulas, a tecnologia do motor flex poderá auxiliar o etanol a render mais dentro do tanque. “Há muita inovação nos primeiros 60 segundos a partir da ignição”, contou Fábio Ferreira, diretor de produtos da divisão de powertrain da Bosch. “O etanol vai ser mais eficiente nos motores por meio de sistemas de injeção direta e com a redução de água na versão hidratada.”

Falta combinar com os produtores de cana de açúcar

Se preço é o que vai convencer o consumidor a usar mais etanol na ótica dos especialistas, o que vai convencer as usinas a produzir mais o combustível e, assim, aumentar a sua oferta no mercado?

“Se a demanda por etanol aumentar, o setor produtivo tem como atender. É preciso desmistificar que não existe capacidade produtiva para atender a uma frota movida a etanol no país”, disse Luciano Rodrigues, diretor de economia e inteligência setorial da Unica, que é a União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia.

O representante da entidade explica, ainda, que é possível sustentar essa oferta por meio da produção de etanol a partir de milho, um processo que estaria ganhando corpo entre os produtores, e também a partir do chamado etanol de segunda geração, que é beneficiado a partir de resíduos da cana.

Dados da EPE mostram que a capacidade de produção de etanol a partir do milho no Brasil, em 2032, será de 13 bilhões de litros. Em 2021, esse volume foi de 3,3 bilhões de litros. O estudo mostra, ainda, que a produção do etanol de segunda geração alcançará 819 milhões de litros em 2032. A projeção leva em conta o aumento da frota no período e resultados do Renovabio no mercado.

De acordo com Rodrigues, a política pública envolvendo a redução do preço do etanol, e eventual aumento da demanda, garantiria ao produtor maior previsibilidade. Na prática, explica o diretor, ele saberia quanto de cana de açúcar teria de beneficiar para produzir etanol e quanto ele deveria beneficiar para produzir açúcar.

“Nenhuma usina hoje no Brasil consegue produzir 100% de apenas um produto, tecnicamente falando. Se o produtor tiver uma visão clara da demanda do mercado de etanol, ele consegue se programar para atendê-la sem se desvincular do mercado de açúcar. Ganharia dos dois lados, inclusive com a exportação desse etanol produzido”, completou o diretor.

Com o tanque abastecido com gasolina, segui viagem de Pelotas ao Uruguai, cruzando a fronteira por Chuí (RS). Já nos primeiros quilômetros em terras uruguaias percebi que a nafta, um combustível derivado do petróleo, predominaria nos postos de combustível do país vizinho. Nada de etanol por estas bandas, pensei. Mas, se houvesse, será que a população local o escolheria?

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