Medida, feita às pressas e sem planejamento de longo prazo, ameaça retrair bruscamente as vendas até que os benefícios sejam colocados em prática
“Não compre carro amanhã”. Você já deve ter visto em algum momento da sua vida esse slogan comercial da rede Chevrolet, cheio de impacto, para avisar que está vindo aí alguma promoção. É mais ou menos o que o governo brasileiro resolveu fazer ao anunciar benesses temporárias para estimular a venda de “carros populares” até R$ 120 mil.
Até agora, quase ninguém entendeu a medida. Não fará os preços dos automóveis caírem para R$ 50 mil, terá validade curta – segundo o próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o programa durará “de três a quatro meses” – e pode custar até R$ 1 bilhão aos cofres públicos em renúncias fiscais.
Tudo para aumentar momentaneamente o volume de vendas – em cerca de 200 mil a 300 mil unidades, segundo cálculos da Anfavea (Associação Nacional das Fabricantes de Veículos Automotores) –, sem um planejamento que volte a estimular a indústria automobilística nacional de modo mais perene e sustentável.
Por mais que a intenção seja boa – o presidente Lula tem laços mais do que conhecidos com o setor metalúrgico –, não valeria mais arquitetar um plano robusto de desoneração em longo prazo? O próprio governo está para propor, após eventual aprovação do arcabouço fiscal, uma reforma tributária que promete, oxalá, simplificar nosso tragicômico sistema tributário.
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Isso sem falar em como o programa trata os automóveis de 2020 como se fossem os mesmos de 2005. Daí que, para além dos pouco benefícios percebidos na prática, o plano do “carro popular” pode ter criado um efeito rebote indigesto: frear bruscamente as vendas de automóveis até R$ 120.000 até que as medidas sejam colocadas em prática.
Segundo informações levantadas pelo CEO da Mobiauto, Sant Clair de Castro Jr, o volume de vendas de veículos leves 0 km no último fim de semana de maio caiu cerca de 20% em comparação com o mesmo período de outros meses. No caso de modelos que se encaixam no teto do programa, a queda chegou a 37% em algumas regiões.
Para reduzir esse fenômeno, algumas concessionárias já estão aplicando promoções e bônus para fechar negócio. Ao mesmo tempo, nas lojas de carros seminovos e usados, os preços médios de veículos até R$ 100.000 já teria baixado cerca de 3,5%.
Outro ponto de alerta está nas vendas diretas para locadoras, que chegam a ser responsáveis por 30% dos volumes de emplacamentos no Brasil atualmente. A maioria dos carros adquiridos por eles estão na faixa contemplada e, obviamente, todas elas vão esperar a aplicação dos descontos para pagar menos na compra.
Isso pode gerar um efeito sanfona, com um buraco importante nas vendas dos chamados “carros populares” até que a redução dos preços seja efetivada, e, então, um impulsionamento dos emplacamentos enquanto durarem os estoques durar a medida. Depois, é bem possível que sintamos a famosa ressaca pós-festa.
É claro que, se o programa der certo e as vendas aumentarem de fato, será celebrado como uma grande sacada em prol da indústria nacional. Entrementes, medidas tão paliativas quanto esta simplesmente ignoram questões muito mais importantes, como a preparação de nossa indústria para a era dos carros eletrificados. Ai, ai…
Fora isso, afetam e muito a vida de quem está aí, no dia a dia, precisando comprar ou vender carro. Criam sensação de insegurança a um setor que já não anda às mil maravilhas. Afinal, até que o programa entre em vigor, muita gente seguirá o slogan da rede Chevrolet como mantra universal e não vai comprar carro amanhã.
Leonardo Felix é jornalista especializado na área automobilística há 10 anos. Com passagens por UOL Carros, Quatro Rodas e, agora, como editor-chefe da Mobiauto, adora analisar e apurar os movimentos das fabricantes instaladas no país para antecipar tendências e futuros lançamentos.
*Este texto traz a opinião do autor e não reflete, necessariamente, o posicionamento editorial de Automotive Business