Chegada de novas fabricantes já atrai as atenções dos trabalhadores para remuneração e qualificação
Nas últimas três semanas o mundo automotivo parou para acompanhar a greve que já ocorre há mais de três semanas nos Estados Unidos. Um movimento que parou a produção em algumas fábricas, gerou demissões e suspensões de contrato e, principalmente, acirrou o debate em torno da manufatura veicular no futuro.
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Afinal de contas, como já ouvimos as montadoras afirmarem em uma série de oportunidades, a eletrificação transformará também os quadros das empresas, impondo mais qualificação em uma mão de obra que manipulará novos elementos por meio de processos ainda mais automatizados do que os atuais.
No contexto do conflito norte-americano, os trabalhadores passaram a reivindicar aumentos salariais com base nessa premissa. Afora o argumento de que as três gandes companhias de Detroit – General Motors, Ford e Stellantis – estão lucrando mais e, portanto, poderiam arcar com uma folha de pagamento maior.
Acontece que não é tão simples como pode parecer. Em um breve resumo, as montadoras sediadas no ocidente correm para que suas operações sejam tão os mais competitivas em termos de custo na comparação com aquelas que produzem veículos elétricos em solo asiático. Não tem sido uma batalha fácil.
A massa salarial é considerada um fator de custo importante nesses momentos em que as companhias fazem contas e buscam cortes de gastos. Por isso, o disputado cabo de guerra entre montadoras e trabalhadores que ocorre neste momento no meio-oeste dos Estados Unidos.
Montagem de veículos elétricos demanda salário maior
Como tudo no mundo moderno é globalizado, o que acontece na indústria instalada na porção desenvolvida do planeta também reverbera, de alguma forma, na indústria que opera abaixo da linha do Equador. Principalmente quando é iminente a produção de veículos elétricos na região.
Afinal, haverá em solo brasileiro disputa semelhante a que vemos em Detroit? Para o consultor David Wong, da Alvarez & Marsal, é possível que em algum momento do futuro o setor automotivo local esteja envolto pela tema laboral.
“Vai acabar acontecendo a mesma coisa. A montagem de um veículo com powertrain elétrico demanda uma série de processos automatizados que não existem hoje nas linhas. O montador interage com os componentes, mas de outra forma, há contato com mais eletrônica. Isso vai exigir um profissional mais qualificado”, disse.
O consultor explica, ainda, que as linhas de montagem brasileiras já concorrem diretamente com as instaladas no México em termos de custo. Wong aponta que o operário mexicano tem um custo menor para a montadora do que o brasileiro em posição equivalente, e isso poderá nortear futuros investimentos das montadoras.
“Custo de produção é estratégico porque toca na questão do preço final do veículo. Quando se trata de um produto novo, que ainda custa muito para o brasileiro médio, as empresas precisam encontrar espaço de manobra para gastar menos”, explicou o consultor.
Montadoras de elétricos cortam custos na Europa
Faz sentido quando observamos os últimos movimentos do Grupo Volkswagen, por exemplo, que já anunciou que precisa cortar cerca de € 3 bilhões da operação de suas marcas de volume. Em julho, Thomas Schäfer, CEO da VW, chegou a dizer que o telhado estava em chamas, se referindo às dificuldades financeiras.
Nem a Tesla, que teoricamente tinha vantagem em termos de custo por ter nascido dentro deste contexto da eletrificação, passa ilesa ao processo urgente de corte de custos na sua manufatura. Por mais mercado, e mais lucro, a empresa investiu em um novo modelo de produção. Assim como a Toyota.
O consultor contou, ainda, que aqui no Brasil pode ser até que o debate em torno de custo laboral seja ainda mais grave, considerando que, ao contrário das fábricas instaladas na Europa, por exemplo, a produção veicular ainda demanda muita mão de obra.
“A automatização na Europa é algo normal por questões populacionais. Falta gente e os robôs preenchem essa lacuna. Em países como o nosso, ocorre o contrário, com o setor automotivo sendo por anos um dos que mais empregam trabalhadores. Nesse ambiente a negociação salarial nem sempre é tranquila”, comentou Wong.
Sindicatos daqui já se mobilizam
O assunto já mobiliza uma das principais entidades representativas do país, no caso, o histórico sindicato dos metalúrgicos do ABC paulista. Segundo o diretor administrativo da entidade, Wellington Damasceno, já estão sendo feitas consultas em outros países no sentido de se buscar uma referência para um novo tipo de trabalho.
Também existe uma preocupação acerca das atuais movimentações das fabricantes que já iniciaram ou pretendem iniciar no país a produção de veículos elétricos.
“Nós temos preocupações com a chegada de novas empresas que se instalam em regiões que não tem uma base sindical forte e que, por isso, podem iniciar as operações pagando salários mais baixos”, disse o diretor do sindicato à reportagem da Automotive Business.
Na segunda-feira, 9, a BYD lançou a pedra fundamental da sua fábrica em Camaçari (BA), no mesmo local onde operava a Ford. Ali, produzirá veiculos leves e pesados elétricos, além de baterias. A Great Wall fará o mesmo a partir de 2024 em Iracemápolis (SP), em unidade onde operou um dia a Mercedes-Benz.
Dados de dezembro de 2022 do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), administrado pelo Ministério do Trabalho, mostram que o salário médio da indústria de transformação, a qual pertence o setor automotivo, é de R$ 2,128 mil no momento da admissão.
Funcionário estrangeiro leva mais dinheiro para casa
Em 20 dias trabalhados no mês, em uma jornada diária de oito horas, este trabalhador receberia R$ 13,3 por hora. Nos Estados Unidos, segundo estimativas do sindicato UAW, um funcionário das três grandes de Detroit recebe US$ 65.
“O funcionário nos EUA custa menos para a montadora, apesar de ter um salário maior do que um brasileiro, por exemplo, porque não há tantos custos exigidos por legislação trabalhista. Os encargos aqui acabam elevando o custo da mão de obra para a montadora, ainda que o funcionário receba menos”, explicou Wong.
A questão salarial também é algo que preocupa os executivos que gerenciam as empresas do setor. A edição de 2023 da pesquisa global da KPMG para o setor automotivo mostrou que 30% dos 900 entrevistados estão preocupados com a falta de mão de obra e com aumento salarial nos próximos 12 meses.
O recorte da pesquisa considerando apenas os executivos brasileiros entrevistados mostra que 34% deles está moderadamente preocupado com o impacto salarial nos negócios nos próximos 12 meses.
Greve nas montadoras no Brasil? Agora, pelo menos, não
A paralisação de fábricas motivadas por questões salariais, pelo menos por ora, não deverá acontecer no país. A reportagem procurou alguns sindicatos dos metalúrgicos em regiões onde estão instaladas montadoras, como São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná e Pernambuco, para apurar a possibilidade.
Todos já realizaram suas campanhas salariais recentemente, de forma que os acordos salariais negociados ainda estão em vigência pelo menos até 2025.
Também existe o fator híbrido, ou seja, a produção de veículos que misturam propulsão elétrica e a combustão. Como ainda é algo que vai durar por algum tempo, tanto o sindicato, quanto o consultor ouvidos pela reportagem, concordaram que nada tão fora da curva, em termos de embates salariais, possa acontecer no curto prazo.